A Ilíada de Homero é o poema do homem na guerra, dos homens consagrados á guerra pelas suas paixões e pelos deuses. No entanto, a piedade é mais forte do que a vingança. A Ilíada fala do amor da glória que eleva o homem á altura dos deuses.
Acima de todas as coisas, este poema, fala do amor da vida, e também da honra do homem, mais alta que a vida e mais forte que os deuses.
A Ilíada retracta um episódio único, que dá a todo o poema a sua unidade de acção, é o da cólera de Aquiles, da sua querela com Agamémnon, rei de Micenas e chefe da expedição contra Tróia, e das consequências funestas desta querela para os Gregos-Aqueus que assediavam Tróia.
‘Canta-me, ó deusa, a cólera funesta de Aquiles…’
Agamemnon, chefe supremo, exige de Aquiles, o mais valente dos Gregos, «muralha do exército», que lhe ceda uma bela cativa, Briseida, que lhe coubera quando da partilha de um saque. Aquiles recusa-se, indignado, a ser privado de um bem que lhe pertence. Na assembleia do povo armado, onde esta exigência lhe é feita, insulta gravemente Agamemnon («Ó ser vestido de imprudência, avaro…, descarado, focinho de cão…, odre de vinho, coração de servo…»), queixa-se de suportar sempre o fardo mais pesado do combate e receber em troca uma parte inferior á de Agamemnon. Aquiles pronuncia diante de todos os seus camaradas o juramento solene de se retirar da batalha e de se fechar na sua tenda, de braços cruzados, enquanto não tiver recebido de Agamemnon reparação da afronta infligida á sua bravura. Assim o faz.
‘ pois agora vou para Ftia, já que é muito melhor ir para casa. […] não tenciona ficar aqui sem honra…’
A sua retirada – e, com ela, a dos mirmidões – tem para o exército dos Aqueus as mais graves consequências. Na planície, sob os muros de Tróia, sofrem três derrotass, cada uma mais desastrosa que as outras. Os Tróianos, comandados por Heitor, filho de Príamo, avançam pela planície, preparando-se para deitar fogo aos barcos dos Gregos, para lançar o seu exército ao mar.
Ao longo destes duras batalhas, a ausencia de Aquiles, torna-se no sinal evidente da sua força e do seu poder. Os mais valentes dos chefes Aqueus – o maciço Ájax, filho de Télamon, o rápido Ájax, filho de Oileu, o fogoso Diomedes, e muitos outros mais, em vão se esforçam por substituir Aquiles. Mas Aquiles encarna em si, toda a cirtude guerreira, sem falha nem fraqueza. Possuindo tudo e recusando tudo, provoca a derrota de todos.
Numa noite trágica, entre dois desantres, enquanto na sua tenda se atormenta na inactividade a que se condenou e que lhe pesa, Aquiles vê vir do campo dos Gregos uma embaixada de que fazem parte dois dos grandes chefes do exército: Ájax, o primeiro defensor dos Gregos depois de Aquiles, tão teimoso como um burro puxado por crianças, o subtil Ulisses que conhece todas as voltas do coração e da palavra. A estes dois guerreiros se juntou o velho que criou a infância de Aquiles, o tocante Fénis, que lhe faz ouvir a palavra e como que o apelo insistente de seu pai. Os três lhe suplicam que volte, que não falte á lealdade que o soldado deve aos seus camaradas, que salve o exército.
Aquiles recusa, ferido ainda no seu orgulho e na sua honra, e vai mais longe: declara que no dia seguinte retomará os caminhos do mar com as suas tropas e voltará ao lar, preferindo uma velhice obscura á glória imortal, que escolhera, de morrer novo diante de Tróia.
Mas, vem o dia seguinte e Aquiles não parte.
Ao ver a destruição iminente dos Gregos, Aquiles mostra-se sensível ás suplicas do mais querido dos seus companheiros, Pátroclo. Pátroclo, em lágrimas, pede ao seu chefe que lhe permita combater em seu lugar, revestido dessas ilustres armas de Aquiles, que não deixarão de amedrontar os Troianos. Pátroclo repele os Troianos para fora do campo, longe dos barcos, mas nesta brilhante contra-ofensiva que dirige, esbarra com Heitor que lhe faz frente. Heitor mata Pátroclo em combate singular, não sem que Apolo invisível tenha ajudado a esta morte que, obtida pela intervenção de um deus, se assemelha a um assassínio.
‘A alma evola-se dos seus membros para a mansão do Hades, gemendo a sua sorte, ao deixar a força da juventude.’
A dor de Aquiles, ao saber da morte do amigo, é assustadora. Jazendo no chão, recusando alimentar-se, arrancando os cabelos, sujando as roupas e o rosto de cinza, Aquiles soluça e pensa em morrer.
Por mais viva que tenha sido anteriormente a ferida infligida á sua honra por Agamemnon, a morte de Pátroclo cava em Aquiles abismos de sofrimento e de paixão que o fazem esquecer o resto. Mas é esta mesma dor que o restitui á vida e á acção, desencadeando nele uma tempestade de furor, uma raiva de vingança contra Heitor assasssino de Pátroclo e contra o seu povo.
Assim se opera no poema, uma reviravolta completa da acção dramática.
Aquiles volta ao combate. É a sua batalha, a da carnificina terrível que ele faz de todos os Troianos que encontra no caminho. Derrotado o exército Troiano, Aquiles fica cara a cara com Heitor. Chegou o momento mais desejado de vingança de Aquiles.
O combate singular de Heitor e de Aquiles é o ponto culminante da Ilíada. Heitor combate como um valente, com o coração todo cheio de amor que dedica á mulher, ao filho, é sua terra. Aquiles é mais forte. Os próprios deuses que protegiam Heitor se afastam dele. Aquiles fere-o mortalmente. Leva para o campo dos Gregos o corpo de Heitor, não sem o ter ultrajado: ata o inimigo pelos pés á retaguarda do seu carro de guerra e com uma chicotada faz correr os cavalos, «e o corpo de Heitor era assim arrastado na poeira, os seus cabelos negros desmanchados, a cabeça suja de terra – essa cabeça antes tão bela, que Zeus agora entregava aos inimigos para que eles a ultrajem sobre o solo da pátria».
O poema não termina com esta cena. Aquiles, a quem Príamo vai suplicar na sua tenda, entrega-lhe o corpo do desgraçado filho. Heitor é sepultado pelo povo Troiano com honras fúnebres. Os lamentos das mulheres, os cantos de luto que elas improvisam, falam da desgraça e da glória daquele que deu a vida pelos seus.
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Fonte: BONNARD, André, A Civilização Grega, Tradução de José Saramago, Edições 70, Lisboa.
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